
É quase hora, meu amor. O trovão anuncia a chuva de chumbo que escurecerá o sol antes de nos lançarmos sob a sombra da morte deste vale. Estas páginas ensebadas, por desprezo ou desgosto, resistem ao lápis rombudo que registra o inexprimível com letras desfocadas. Um diário que não conhece dias neste limbo cinzento situado entre o tempo, a vida e a morte. Aqui, tudo é espera… até que não seja mais. É quase hora, e juntos estamos todos sozinhos nesta nossa terra de ninguém. Nós estamos nas covas. Lá fora, descansam em paz as crianças da guerra, ocultas sob a mortalha da neblina. Como marionetes imóveis dependurados em arames farpados ou amontoados nos maus lençóis de uma cruel isonomia, dormem bravos e covardes, intelectuais e operários, crentes e ateus, heróis e bandidos. É quase hora, e os corvos bicam os olhos que já não serviam mais. Eu vi esses olhos foscos de exaustão eterna, aguardando somente o dilatar das pupilas: janelas abertas da alma que voa embora para a escuridão, cansada de desesperança. Olhamos e olhamos, mas não há nada nesta terra encharcada de sangue e chuva que se pareça com futuro. Só nos resta, então, o presente que nos deram. Aqui, jazemos. Sem glória, sem bandeira, sem lágrimas. É quase hora, e os mortos que ainda vivem se levantam mecanicamente de armas em punho, há muito esquecidos do que teria sido o desespero. Rufam os canhões. Calamos nossas baionetas cegas. Minha mente vazia inunda-se de memórias da tua imagem liquefeita, uma aquarela difusa de tuas maravilhosas insignificâncias cotidianas e dos subestimados prazeres de podar roseiras e alimentar bichos. Silêncio. Lembro-me claramente do teu beijo de boas-vindas que nunca aconteceu, o primeiro depois do último. É hora.