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Alguém já disse que o bom e o ruim da vida é que tudo passa. Poderia ser o subterfúgio perfeito para preencher o cotidiano de um carpe diem cheio hedonismo e consumo desenfreado. Para aqueles que têm um vazio infinito entre as costelas, porém, o dia en passant é só uma sensação angustiante de que está deixando de fazer algo que a vontade imprecisa define como qualquer coisa. A ironia é que, quando livres das obrigações, fazer nada parece sempre a opção que restou e é servida junto com pensamentos do que falta fazer. É questão de debulhar logo as horas pra chegar no próximo compromisso e depois dizer que está muito ocupado catando-as pelo chão. Pra quê, afinal?
Minha vida
não tem ritmo de soneto
nem sabor de caramelo.
Não é uma volúpia insensata
por momentos de alegria
nem uma busca desesperada
por turbulências pacíficas.
Não tem aventuras adrenalínicas
nem acontecimentos cardiopáticos.
Minha vida
é um homem cercado
por um mar de cotidiano
por todos os lados
... e muita redundância.
Pensando com passos divagares, caminho pelas ruas de uma Casa Amarela luxuriante. De tipos em tipos, afigura-se um mosaico primitivo das gentes. Nas descalçadas pedregosas, recostados às muradas, mendigos bem-humorados dedicam-se à tarefa interminável de separar o imprestável do que não serve para nada, dançando involuntariamente ao som da cúmbia que pigmenta os ares do início da noite. Mulheres rechonchudas resfolegam um cheiro gordo de pastel cumprimentando o céu com seus sorrisos de oito escalas, em acordes sonolentos de volúpia. As ancas disformes forçam espaço por entre roupas minúsculas buscando um toque da mão faceira do acaso. Taxistas parados, inseparáveis de seus veículos, nos quais por vezes encaixam-se, qual peça-motor, com gestos robóticos, observam mecanicamente os transeuntes e — por ironia — o trânsito. No inferninho, começa discretamente a entrada no caminho libertino das maravilhas da escravidão aos prazeres exuberantes e tristonhos. Carregadores de compras, olhansiosos, miram a porta dos sebosos mercadinhos, tocaiando felinamente consumidores pacatos e bovinos. A recém-noturna alegria casamarelense choraminga alto, esticando com avidez os braços para quem quer que passe. Frutas infelizes jazem mortificadas nos carrinhos-de-mão, conhecendo seu destino de não terminar o dia, pois as frutas e as feiras, como as flores presenteadas, são entidades diurnas, que se apodrecem com o pôr-do-sol. As flores, aliás, resistindo ao solo infértil da grosseria que grassa nas ruas do bairro, comparecem à sua venda todos os dias, esperando transformarem-se em gentileza para cumprirem sua razão de ser. Vendedores de sapato vestidos de um rigor engravatado aglomeram-se nas portas de suas lojas aguardando diariamente, mais do que clientes, a vertigem de um daqueles dias lucrativos sem muito significado real: um dia de namorados, de mãe, de pai e, sobretudo, um Natal após o outro. Dezenas de cachorrinhos idênticos — de pelagem parda, focinho escuro e olhos amigos — mendigam à toa com os maltrapilhos mandingueiros, implorando silenciosamente migalhas de afeto e gestos que saciem sua fome. No canto inferior direito, eu, com um constrangido Guimarães Rosa, ando fantasmagórico e lentamente sorrio para dentro pensando o quanto gosto e detesto esse mosaico infame, mas, decididamente, alegre.
Quando era pequeno, fiz uma viagem pra casa do Sol. Pra mim, era uma estrada de sonhos flutuando em dentes-de-leão que se desprendiam de suas hastes banguelas, felinos, soprando suavemente pelo mundo. Estrada longa, longa, longa demais, que até perguntação de menino cansa. Viagem de girassóis e gerânios(!) e gerúndios de um sol se pondo num prá-sempre laranja. Estrada de flores de mandacaru indo ao largo do desconhecido, moldurando uma imaginação criança que cheirava o vidro do carro achando bom aquela flor-branca-sem-nome. Era cidade e asfalto e cidade e asfalto. Tantos sãos e santos haviam no nome daquelas vilas com carteirinha de cidade. Cumprimentei todos eles com meninice de calças curtas (querendo só parar para um picolé, na verdade). Quando cheguei, conheci a casa do Sol: era Piauí, era Maranhão. Nem precisava de água pra ser bonita. Seca, bela... é só questão de molhar as consoantes. É uma terra que vive só de sol... sozinha. Era casa de meus tios, todos meu pai. Meu pai que ficou na roça, meu pai que criava bois. Homens lavrados pela vida. Tinha jumento, que ia e vinha carregado de arroz, daqueles que conversam com o vaqueiro por ia! e eia!, arfando com as narinas crescidas feito os tremas sua eloqüência eqüina. Mas tristonhos. Burrinho desinteressado de vida, sem orelha
A construção de um adulto é uma mutilação. Ganha-se muitas obrigações, perde-se vários direitos. Perde-se o direito de ter dúvidas, de ser bobo, de falar sacanagem, de ficar bêbado, de pegar um ônibus desconhecido, de estar nu em casa, de andar sem destino, de estar desarmado. Mas quando se gosta de alguém, recupera-se o direito (e permissão) de novamente não ser crescido. Por isso, estar apaixonado é algo infantil (no melhor sentido). Anda-se a esmo por causa de qualquer jasmim mais cheiroso. Qualquer riso amarelo é de uma ternura radiante. Fica-se completamente desnudo de certezas (ou vestido nalguns trapos de seriedade mal tecida) e completamente bobo quando de um olhar encontrado com a pessoa gostada. A bobagem vira tratado filosófico; a sacanagem, singeleza. Conversa-se água, chovendo palavras no molhado, mas de boca seca de tanto estar de coração na boca. Na verdade, palavras secas de si, só para manter o fluxo do único fluido agora indispensável: mais um pouquinho do outro. Nada como a espera desesperada de cada palavrinha vazia de razão e cheia de doçura. Quando a gente gosta, fica desalmado. Isso mesmo: sem alma. Só uma carne-viva esperando um movimento elétrico do outro, que machuca e extasia num só tempo. Quando a gente gosta, fica descarado. Faz uma cara fechada de tempo nublado que um sorriso abre sem chave nem chuva. Quando a gente gosta, fica desarmado.
... bom demais gostar, ruim é ficar desamado.
Domingo é um dia sem poesia. Passa-se o domingo a toque de controle remoto. Esse dia de descanso é o mais cansativo. Cansado, sozinho. O olhar encurralado nos cantos da sala procurando displicentemente uma saída. Mas, do domingo, não há saída. A única porta que existe se abre de meia-noite, mas ela dá direto na segunda-feira. Coloco um CD e ouço os rangidos do chão de taco enquanto ele toca e eu rodo pela sala. Jantar (sorvete) sozinho. TV. TV. TV. Não tem poesia. Uma pia de cozinha no domingo à noite definitivamente não é poesia. É raro um dia autenticamente feliz. Um domingo, então, nem se fala. Um dia feliz é como um poema no meio de uma página de jornal. Bastavam dois versos de Pessoa entre a (milésima) notinha sobre a violência no Recife e a resenha de Ypiranga um, Sport, zero. É bom assim: uma felicidade numa forma que a gente nunca espera. Não sei o que fazer da vida. Pai acha uma coisa; e mamãe — que Deus a tenha — achava nada. E ela estava certa: no fim das contas, é melhor não fazer nada até a hora chegar. É como conversar, como dançar. Um instante que é simplesmente melhor que o outro, e ninguém se sabe por quê. O problema é que a espera é cansativa demais. Essa vida é de espera. Essa vida com programas de índios xingu e calouros-mirins. Essa vida de domingo, de dormindo. Domingo é assim: no fim do dia, tudo que resta é uma sensação de que ele se foi levando alguma coisa muito preciosa e deixando um vazio que ocupa, na exata medida, o peito. Tô pensando demais. Melhor mudar pro Faustão.
Já se disse que a gente morre um pouquinho a cada minuto. Pois bem, podem contabilizar que no domingo se morre dois pouquinhos (seja lá quanto isso for) a cada minuto. É triste. “A vida é assim. Mas há que se trabalhar pra viver.” Na verdade, não existe muita opção na vida. Aliás, só há uma: viver. A diferença é quanto tempo se demora pra descobrir isso e “escolher” essa “opção”. Há que se viver. Tem de se viver. Afinal, quanta desgraça é necessária pra que alguém consiga permissão pra ficar triste num canto por um tempinho sem ter que ir lavar os pratos? Pra que deixem descansar da vida por segundos (vale lembrar que dias são apenas uma multidão de segundos...). É uma inundação de tanta coisa da vida. Por isso, existem(?) os suicidas. Suicida é uma pessoa que morreu asfixiada de tanta vida. Não conseguiu tomar um fôlego. A vida, como as outras substâncias aquosas e mutáveis, afoga as pessoas quando engolfa. É quase uma morte acidental.
Depois de estar vivo por quase dois dias, abandonou-se a uma liberdade precária: comia o que lhe dessem e andava por caminho que se lhe oferecesse, como se caminho fosse coisa que se cria em vez de existir antes. Não importava muito. Nada importava nada, quanto mais muito. Tinha fome de um sorriso amigo, mas só encontrava a miséria nos rostos alheios (talvez mais famintos que ele próprio). Foi quando decidiu beber. O ardor quente e seco do gim lhe inundava o espírito, por segundos, de paixão e de um sabor ligeiramente azedo — que era o mais próximo do que ele conhecia por felicidade. Mas era só um triste engano. Era a negra boca da solidão que o carcomia, consumindo lentamente sua forma e força. Seu corpo queimava por dentro nas faíscas oriundas do atrito entre suas últimas esperanças e a aspereza do que via
Ninguém entendeu o que fazia aquele sujeito no meio da rua quando foi atingido, mas quem assistiu à cena garantiu ao menos uma coisa: ele sorria como se nunca tivesse sorrido.
No boxe, um dos primeiros treinos é o shadowboxing, ou simplesmente sombra, que é basicamente lutar com a sua própria sombra. Acho pretensão e até desrespeito filosofar do boxe uma metáfora da vida, mas esse é (física e metaforicamente) um grande teste: enfrentar um adversário tão (pouco) ágil e tão (pouco) astuto quanto você. Acima de tudo — vez que o boxe consiste em enganar o adversário, isto é, fazê-lo pensar errado e atingi-lo com um golpe imprevisível para ele —, enfrentar a sombra é algo infinito, pois é um rival ciente de todos os seus pensamentos, a quem, portanto, você jamais poderá enganar. Às vezes, fico com a sensação de que estou fazendo isso o tempo todo: reagindo a cada pensamento e sentimento meu, numa sincronicidade eterna e vazia de propósito. No fundo, talvez o objetivo seja estar preparado enfrentar os outros (o que é ridículo por si só). Isso me faz pensar que a única forma de atingir minha sombra é acreditar de forma tão convincente em alguma coisa que eu mesmo não saberia dizer se é verdade ou não depois de dois ou três copos de vinho — que é um lugar fronteiriço entre os reinos de Tenho Certeza e Já Não Posso Julgar; um lugar quando a verdade começa a se diluir em relatividade, deixando um gosto esquisito na boca.
No entanto, a despeito de qualquer treino, no shadowboxing não há como sair ileso: a única forma de acertar um golpe é expondo uma fraqueza.
[Foto: http://www.pbase.com/arn/snickers]You made me a shadowboxer, baby
I want to be ready for what you do
I've been swinging around me
'Cause I don't know when you're gonna make your move[Shadowboxer, do disco Tidal (1996), de Fiona Apple]
e ia dormir. Logo começava o mesmo dia novamente. As mesmas roupas, vazias de Estevão, entravam nos mesmos sapatos velhos. Sua camiseta branca suja e esgarçada nem na palavra lembrava as alvas garças do porto onde carregava, todos os dias, seu quinhão da vida. Pegava o ônibus cheio e segurava firme na barra de ferro e agüentava os sacolejos até a última parada da rua dezessete de novembro e suportava os olhares e descia sem tomar um gole de fôlego. Uma vez no porto, desligava. Arrastava-se no curto espaço de
Olhava-se pela terceira vez no espelho, espantada. Sua pele parecia opaca, e os poros abertos. Cansava-se daquela verdade cruel do espelho. Todo sorriso era um arco de cera que só esticava uma tristeza fina de canto a canto da boca. O resto do corpo, não tinha coragem de olhar. Já sabia que veria aquelas escamas flácidas. Não era de admirar: estava no auge dos seus 22 anos. Já era uma anciã da adolescência, prestes a falecer para a idade adulta. Não sabia quando nem como nem onde envelhecera tanto. Sabia. Foi
Imagem: North Star (1902), de Alphonse Mucha (1860–1939).